Friday, October 8, 2010

A República acordou com ressaca


de Inês Nadais



O que aconteceu na Rotunda no 5 de Outubro de 1910, mais todo o século a seguir, até este Outono em que a melhor coisa que nos pode acontecer é o FMI: "República/s" é O Teatrão a olhar para este país cheio de dívidas e a perguntar o que é feito daquilo que íamos ser.

Temos andado a falar de muitas coisas, quando falamos da República, neste Outono em que ela faz cem anos e a melhor coisa que nos pode acontecer é o FMI, mas era bom que trocássemos ainda mais ideias sobre o assunto: aqui, nas "República/s" que O Teatrão ontem estreou na Oficina Municipal do Teatro, em Coimbra, fala-se do "bandalho, pernicioso" do Afonso Costa ("Que te há-de um português chamar (...) ante o teu merecimento de insultos, ó hiper-tudo-isto?"), do dia em que o Visconde da Ribeira Brava virou a casaca, dos rapazes que fizeram a greve de 69 e agora estão a engordar no Parlamento (ou então se tornaram assessores), do Manuel Alegre enfiado no Mário Soares e até, bardamerda, do FMI ("O FMI é só um pretexto vosso, seus cabrões, o FMI não existe, o FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma").

Como estamos em Coimbra, além de se falar dessa República e dos cem anos que já tem em cima, também se fala das repúblicas (casas de estudantes) lá de casa - dessas Repúblicas dos Pequenitos que, como a República dos grandes, acordam ao meio-dia, de ressaca, cheias de dívidas "aos sociais" e de grandes dramas acerca do que é feito daquilo que íamos ser (tudo porque, enfim, poucas coisas nestes cem anos correram como deviam ter corrido, e ainda por cima acabou o gás). A ideia veio do encenador, o brasileiro Marco António Rodrigues, colaborador regular do Teatrão (montaram juntos "O Círculo de Giz Caucasiano", de Bertolt Brecht, em 2008, e em Dezembro vão montar a "Noite de Reis", de Shakespeare): "Há uns tempos atrás, o Ricardo [Correia] fez um espectáculo que percorria a cidade e passava por uma república. Eu achei que iconograficamente aquilo tinha uma força... Falei para eles: 'As repúblicas são uma coisa tão local, só têm um similar em Ouro Preto que é copiado daqui, vocês deviam pensar em cima disso'", explica.

Pensaram em várias coisas ao mesmo tempo: nos cem anos da Implantação da República (sobretudo a partir da versão, digamos, iconoclasta de Rui Ramos nesta última "História de Portugal", mas também da tradição satírica praticada nos tempos da I República, da caricatura à farsa sexual), na experiência comunitária das repúblicas de estudantes coimbrãs, em Aristófanes, no número televisivo dos "Homens da Luta" e nas inverosímeis peripécias recuperadas por Adelino Gomes e José Pedro Castanheira em "Os Dias Loucos do PREC", lembrete de como todas as revoluções portuguesas têm a sua veia tragicómica.

Esta, a revolução republicana, é particularmente dada à tragicomédia - e é por isso que o texto, que Jorge Louraço Figueira montou a partir de todas as fontes disponíveis e das contribuições dos actores, convidados a escrever cenas da peça, vai muito pela derrisão. Não havia outra maneira de fazer isto que não fosse cantando e rindo (mas cantando e rindo como forma de intervenção), justifica o encenador: "Vocês têm de rir disso, porque a tragédia já está instalada no quotidiano. Tem havido muitas perdas aí, pelo que percebo". Tal como na revolução republicana, tudo o que pode correr mal irá correr mal nesta república de raparigas, até à noite em que elas não chegarão a queimar o soutien na rua, em protesto, mas pelo menos irão tirá-lo.

Passado e presente

Não que a moral da história seja necessariamente má - há lugar aqui para algum revisionismo acerca da I República, mas também há simpatia por Machado dos Santos, o homem que ficou na Rotunda no 5 de Outubro de 1910, quando tudo parecia perdido, e até por todo o século que veio a seguir. "Talvez eu, por estar de fora, olhe para a história da República com mais interesse do que vocês. É uma grande luta, um século grande de 120 anos em que Portugal faz avanços enormes. É claro que o centenário chega numa altura sui generis, com o FMI a ameaçar vir outra vez e a União Europeia a tentar pôr-vos de joelhos. Mas isso não significa que o salto não tenha sido de gigante. Aliás, é na medida em que o Estado perde poder que os cidadãos podem recuperá-lo", argumenta Marco António Rodrigues.

Tal como o olhar sobre a República, também o olhar sobre as repúblicas, que de resto participaram activamente nas acções paralelas ao espectáculo que estiveram na rua até terça-feira, é ambivalente. "Ao mesmo tempo que têm coisas muito libertárias, têm outras que são muito conservadoras. Houve uma coisa que me impressionou muito, que foi o jantar: à noite todo o mundo está na mesa, todo o mundo janta junto. Isso também tem a ver com uma tradição muito própria de oralidade. Em todas as repúblicas que visitámos, todo o mundo quis contar histórias dos repúblicos que passaram por lá, dos repúblicos que ainda lá estão agora. Há realmente uma memória que é preservada. As repúblicas têm muito esse lado de estarem com um pé no passado, na tradição, e outro no presente", sublinha o encenador.

"República/s" também tem um pé de cada lado: isto é o que éramos, e é o que somos. Não somos um país brilhante, temos dívidas, dramas e o FMI a aterrar na Portela, mas ninguém faz isto com a nossa calma. Nem com tanta piada.

fotos do espectáculo